Em 2013, antes mesmo de milhões de brasileiros saírem às ruas em junho e julho para protestar e reivindicar melhorias em setores como transporte público, algumas das principais capitais do País já haviam recebido milhares de reclamações de usuários sobre atrasos, superlotação e outros problemas que mostram a má qualidade do serviço prestado.
Só na capital paulista, onde ocorreram algumas das maiores manifestações, a SPTrans recebeu 120.058 reclamações. Conforme a assessoria do órgão, como nem toda reclamação pode ser checada ou confirmada posteriormente, o número de sanções ou ações corretivas tende a ser sempre menor. Por isso, a quantidade de punições disciplinares (64.159); de inspeções (1.915) ou de ações (40.182), que podem resultar em ajustes operacionais por parte das empresas, foi inferior ao total de queixas.
A maior causa de insatisfação entre os usuários que procuraram a SPTrans é o tempo de espera por ônibus de determinadas linhas, o que motivou 39.765 reclamações. Em seguida, vêm casos em que os motoristas não atenderam ao pedido de embarque e desembarque de passageiros (24.243); motoristas que dirigem de forma perigosa (12.577) ou que tem algum outro tipo de conduta inadequada (11.116). O atraso ou cancelamento de viagens motivou 5.966 reclamações. Três dos quatro itens que se seguem também refletem a conduta de motoristas e cobradores: destratar usuário (4.504); não esperar até que o passageiro tenha embarcado ou desembarcado (3.351); superlotação (3.133) e interromper ou atrasar a viagem propositalmente (2.272).
Garantindo que todas as queixas são analisadas e respondidas, a SPTrans informou que o número de registros, em 2013, foi 15% menor do que o de 2012. O órgão também está adotando novas medidas para melhorar o serviço e reduzir as ocorrências, mas sua assessoria ponderou que, se comparado com passageiros transportados todos os dias, as mais de 120 mil reclamações anuais, percentualmente, não são um número tão alto. Em toda a região metropolitana de São Paulo são registradas, em média, 6 milhões de viagens por dia útil.
No Rio de Janeiro, a Secretaria Municipal de Transportes informou que, a partir das reclamações recebidas, realizou operações de fiscalização que resultaram em 2.850 ônibus vistoriados, dos quais 468 foram lacrados e 324 tirados de circulação. Os veículos lacrados podem circular sem passageiros, e o lacre só é retirado quando o problema identificado é resolvido.
As reclamações mais comuns dos usuários cariocas são a falta de ônibus, a má conservação da frota, a necessidade de que o veículo seja vistoriado e o excesso de passageiros. A secretaria informou que uma medida para tentar melhorar o serviço foi a oferta de cursos de capacitação, por meio do Programa de Monitoramento e Controle de Conduta dos Motoristas de Ônibus. De acordo com a secretaria, 8,5 mil dos 18 mil motoristas que atuam no sistema de transporte público já receberam treinamento.
No Distrito Federal, onde o governo, ao longo do ano, assumiu o controle e a operação de várias empresas de ônibus sob a justificativa de garantir o interesse da população, que reclamava dos maus serviços prestados pelas companhias, a ouvidoria do DFTrans informou ter recebido apenas 16.013 reclamações. As principais queixas foram sobre descumprimento de horários (3.267); má conduta de motoristas (2.817); atrasos (1.950); falta de ônibus (1.491) e desvio de itinerário (747).
A assessoria do DFTrans informou que 37% das reclamações feitas em 2013 ainda estão sendo processadas; 36% foram resolvidas ou julgadas improcedentes; 22% estão em vias de ser resolvidas. A partir dos casos resolvidos, só no segundo semestre de 2013, foram aplicados 598 autos de infração devido à falta ou defeito de assentos/encostos nos bancos; 557 autos de infração por outros defeitos que causem desconforto aos passageiros e 362 por falta de higiene. O DFTrans incentiva a população a denunciar as irregularidades por meio do telefone, procurando repassar o máximo de informações possíveis, como o número do veículo, o nome da empresa, horário e local aproximado da ocorrência e, se possível, nome dos motoristas ou cobradores.
Para o pesquisador do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), João Paulo Amaral, os números de reclamações não indicam o quanto de fato a população está insatisfeita com a qualidade do serviço prestado nas grandes cidades. “As pessoas acham que reclamar aos órgãos formais não faz sentido e não se dão tempo para parar e fazer isso. As manifestações do ano passado demonstraram que as pessoas concluíram que precisavam sair às ruas para reclamar de forma mais enfática. Para termos um quadro real é necessário fazer uma pesquisa de satisfação, entrevistando usuários.”
Especialista defende divulgação da lista das melhores e piores empresas de ônibus
Em Porto Alegre, conforme informações da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC), as maiores reclamações dos mais de 1,2 milhão de passageiros diários transportados pelos quatro consórcios de empresas da cidade em 2013 foram contra o desrespeito à tabela de horários (13.990 queixas); recusa de embarque de passageiros por parte do motorista (4.823); imperícia ou imprudência do motorista (2.635) e falta de urbanidade do cobrados (2.012),
A assessoria da EPTC atribui muitas das reclamações, principalmente dos atrasos dos ônibus, à realização das obras para a Copa 2014, que retiraram os ônibus dos corredores e os colocara nas ruas disputando espaço com os outros veículos. Também segundo a assessoria, a EPTC faz fiscalização nas empresas e realiza ações educativas. Entre as fiscalizações, a assessoria cita a utilização de radares móveis nos corredores de ônibus para coibir o excesso de velocidade. Outro avanço no sentido de melhoria dos serviços, apontada pela EPTC, está a publicação do edital de licitação do sistema de transporte coletivo, que deve acontecer no dia 31 deste mês.
O pesquisador do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) João Paulo Amaral defende que as secretarias municipais e órgãos ou empresas públicas que fiscalizam a prestação do serviço de transporte público deveriam divulgar, de forma regular e transparente, a relação das mais frequentes reclamações feitas por usuários e o nome das empresas mais bem e mal avaliadas.
Coordenador de uma pesquisa do Idec sobre o grau de insatisfação dos usuários de ônibus e metrô de São Paulo (SP) e Belo Horizonte (MG), Amaral lembra que a estratégia, comum em outros setores, como no transporte aéreo, é uma forma eficiente de obrigar as empresas concessionárias a melhorar a qualidade do serviço que oferecem. “Isso é algo que já ocorre em vários setores. O Poder Público oferecer esse tipo de dado é um ótimo termômetro e tornar públicas essas informações é muito interessante.”
Os órgãos responsáveis pela fiscalização do serviço de transporte público nas capitais informam que os dados de reclamações e sanções aplicadas não são disponibilizadas nos sites oficiais. “Muitas prefeituras não têm esses dados tabulados, não os divulgam e não dão respostas aos usuários que se queixam. Isso pode significar que os órgãos responsáveis podem não estar usando essas informações, que devem ser consideradas de forma mais eficiente, como um termômetro da qualidade do serviço prestado”, diz Amaral, defendendo que os usuários não deixem de registrar suas queixas.
O próprio Idec lançou recentemente, na internet, um site no qual as pessoas que passaram por algum problema com o transporte público - e não apenas com ônibus - podem registrar sua queixa. O site faz parte da campanha Chega de Aperto, organizada com o apoio da organização não governamental ClimateWorks Foundation, com o propósito de reforçar entre a sociedade a tese de que a mobilidade urbana e os meios de transporte públicos são direitos essenciais.
Falta de respostas de autoridades e de concessionárias desestimula usuários
Ônibus que demoram a passar. E, quando passam, transportam mais passageiros do que o limite recomendável, justificativa para que os motoristas não parem nos pontos onde usuários esperam, em alguns casos, por quase uma hora. Ou param, mas apenas para deixar descewwr alguns passageiros, não permitindo o embarque de ninguém – o que acaba por amenizar o desconforto de quem viaja espremido, de pé, em ônibus velhos e malcuidados que não raro, quebram no meio do caminho.
As reclamações de quem usa o transporte público, sobretudo ônibus, acabam por desencorajar o uso dos meios coletivos, estimulando quem pode a optar por carros que vão congestionar as ruas das cidades brasileiras. Segundo pesquisadores do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), os usuários estão habituados aos transtornos. E, por isso, não exigem que o Poder Público fiscalize e puna as concessionárias que não oferecem serviço de qualidade.
“As manifestações do ano passado indicam que a população percebe que os problemas não são resolvidos. Daí as pessoas terem ido às ruas para reclamar de forma mais enfática”, diz João Paulo Amaral, coordenador da pequisa Transporte Público, Insatisfação Coletiva, divultgado em setembro de 2013. Ele considera que os canais criados para receber as queixas e sugestões de usuários do transporte público, como as ouvidorias e serviços de atendimento das empresas de ônibus, costumam ser de difícil acesso aos que não têm tempo sobrando e que, na maioria das vezes, não estão aptas a dar uma resposta satisfatória aos reclamantes. “Nós mesmos, do Idec, ao fazermos a pesquisa e acionarmos um desses serviços na condição de usuários, não recebemos orientações claras, como, por exemplo, o que fazer para obter as passagens de volta”, disse o pesquisador.
As considerações de Amaral fazem eco às queixas de muitos usuários. Em Brasília, por exemplo, a assessora Adriana de Araújo Alves já recorreu ao DFTrans em duas ocasiões. Na mais recente, em fevereiro, registrou queixa contra a empresa Riacho Grande. Na véspera, ela já havia telefonado para a companhia de ônibus, se queixando de um motorista que arrancou com o veículo antes que ela tivesse tempo de embarcar.
“Ele nem bem tinha parado no ponto, ainda estava em movimento, abrindo a porta, quando eu me virei para me despedir de um amigo. O motorista voltou a acelerar e foi embora enquanto meu amigo gritava para ele parar”, contou Adriana à reportagem. “Peguei outro ônibus que vinha atrás. A certa altura, os dois ônibus ficaram lado a lado e eu perguntei ao motorista, pela janela, porque ele tinha feito aquilo. Ele respondeu de maneira bem mal-educada que tem horário a cumprir e que se eu quisesse namorar, deveria apanhar um táxi. Como se estivesse me fazendo um favor.”
Em agosto, ela já tinha reclamado ao DFTrans que os motoristas estavam passando direto no mesmo ponto de ônibus. “A atendente me garantiu que eu receberia uma resposta por e-mail, mas, até hoje, nada recebi. Como acabei perdendo o número do protocolo, não consigo saber o resultado da primeira queixa”, contou a assessora, que não crê em qualquer punição para a companhia de ônibus. Ainda assim, decidiu registrar a nova reclamação. O DFTrans informou que demoraria no mínimo 15 dias para uma resposta. A Riacho Grande prometeu dar um retorno no mesmo dia, o que não aconteceu.
“O mais emblemático nisso tudo é o fato de o transporte público não ser tratado como um serviço cuja qualidade o Poder Público deve garantir. Em outros setores, como o transporte aéreo, os consumidores recebem uma resposta. No transporte público falta até estímulo para que os usuários reclamem”, diz Amaral. Para ele, os órgãos públicos deveriam usar as reclamações para melhorar o sistema de transporte e para saber se uma empresa está prestando um bom serviço. “Obviamente, nenhum governo vai conseguir resolver uma a uma as muitas reclamações, mas é importante que haja um procedimento de cobrança que resulte na melhoria da qualidade do serviço prestado”, concluiu Amaral.