Madrugada no Parque São José, bairro da periferia de Belford Roxo, na Baixada Fluminense, Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Às 4h30m, o operário da construção civil Lincoln Key Taíra, 49 anos, tira do bolso R$ 5,50 para a passagem de ônibus. Ao sair de casa com destino ao trabalho, Taíra não tem a certeza de voltar para casa à noite, abraçar a mulher e os quatro filhos. Quando não consegue o dinheiro para pagar a tarifa, resta a ele procurar um lugar para dormir. Para não ficar na rua, Taíra recorre à calçada do Hospital Municipal Souza Aguiar, no Centro do Rio, como abrigo.
O morador de Belford Roxo é um dos 37 milhões de brasileiros que, semanalmente, não podem usar o transporte público de forma regular, por não terem como pagar a tarifa ou, simplesmente, como forma de economizar. A estatística é da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU) e tem como base estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
- Temos as tarifas de ônibus mais caras de toda a História, pesando cada vez mais no orçamento. Não é uma exclusividade do Rio, é praticamente em todo o país - afirma Ailton Brasiliense, pesquisador da NTU que se dedica há 35 anos ao estudo dos transportes. Rotina árdua de ônibus lotados
O caminho entre a casa e o trabalho é longo para Taíra. São cerca de 40 quilômetros até o Centro do Rio que, muitas vezes, transformam-se em uma viagem cansativa que supera duas horas.
- Além de o ônibus demorar para aparecer, anda sempre cheio e, quando chega na Avenida Brasil (uma das principais ligações entre a região central do Rio com a Baixada Fluminense e a Zona Oeste), o trânsito não anda. O ônibus fica preso no engarrafamento - reclama Taíra, que trabalha em uma empreiteira como calceteiro (pedreiro que faz calçadas) e presta serviço para a prefeitura do Rio. Sua jornada no emprego começa às 7h e vai até o fim da tarde. Para não se atrasar, ele sai de casa antes das 5h.
A renda mensal de Taíra é de pouco mais de R$ 1 mil. Ele economiza para garantir a volta para casa. Mas nem sempre consegue. Na madrugada do dia 4, fez do corrimão de acesso ao setor de emergência do Hospital Municipal Souza Aguiar uma cama. O local, diz ele, é mais seguro, longe da violência, do sereno e do frio.
- Hoje não consegui dinheiro. Também não pedi emprestado - disse Taíra, que se orgulha do sobrenome. - Meu filho descobriu, na internet, que meu pai é descendente de samurais japoneses. Herdei a força deles, só não aprendi a lutar - brinca.
Segundo a NTU, o transporte público é responsável no Brasil pelo deslocamento diário de 59 milhões de passageiros. Os ônibus detêm 92% da demanda e, afirma Ailton Brasiliense, o serviço pouco difere nas capitais. Para ele, os baixos investimentos refletem hoje no bolso dos brasileiros.
- A falta de corredores exclusivos para ônibus, os engarrafamentos, ruas e estradas ruins, além da falta de planejamento das cidades, que empurraram a população para a periferia obrigando a ter linhas com percursos longos, contribuíram para a tarifa elevada. Como não há investimentos, muitos passageiros deixam de usar o transporte público e compram um carro velho. Ou seja, mais engarrafamentos, poluição e queda na qualidade de vida das cidades, um caos.
O transporte coletivo movimenta R$ 25 bilhões por ano e gera 500 mil empregos diretos. A maioria dos usuários é de baixa renda. Nos últimos 12 anos, o sistema regular de transporte perdeu 30% da demanda.
Brasiliense ressalta que a carga tributária responde por 11,6% do valor das tarifas nas capitais, encarecendo o serviço. O pesquisador cita apenas Curitiba, capital do Paraná, como um exemplo de organização no transporte. Os corredores exclusivos para ônibus começaram a ser planejados e implantados ainda nos anos 1960.
- Isso aconteceu quando a cidade tinha apenas 340 mil habitantes.
Taíra não era o único a dormir no Souza Aguiar. Distante poucos metros, dentro do setor de emergência, o ambulante Paulo Gardino, 53 anos, morador na Vila Santo Antônio, em Duque de Caxias, também na Baixada Fluminense, encontrou abrigo. Com uma renda mensal de R$ 600, ele mantém uma rotina noturna de dormir no hospital ou em igrejas evangélicas, que promovem vigílias.
O ambulante tem como hobby a percussão. Toca em igrejas cristãs e participa de gravações de CDs de música gospel de cantores iniciantes. O trabalho é garantia de reforço no bolso. Gardino conta que sempre foi ambulante. Sua renda não é suficiente para conseguir manter a casa, mulher e quatro filhos. Acaba faltando para o transporte. De segunda a sábado, ele trabalha no Centro do Rio, próximo à Central do Brasil, área de comércio popular e de grande movimentação de pedestres.
- Vendo de tudo, mas o que sai mais é refrigerante e água. Gostaria de ir todo dia para casa, mas nem sempre dá - diz.
Fã de Roberto Carlos, ele sonha em se dedicar à música:
- Toco bongô, gosto de música. Às sextas-feiras à tarde me apresento num culto - conta ele, que segue rígidas recomendações de seu pastor, que vão desde ser dizimista a nunca tirar fotos.
Aos sábados, quando volta para casa, o dinheiro economizado com o transporte financia uma pequena felicidade: ele leva os quatro filhos para passear no Parque do Flamengo.