Gastam-se em média três horas para ir ao trabalho ou à escola e voltar para casa na Grande São Paulo, onde vivem 19 milhões de habitantes. Há décadas, a região convive com o deslocamento da expansão demográfica para as periferias e momentos de crescimento econômico – como o dos últimos anos –, desacompanhados de planejamento urbano e de investimentos em infraestrutura de transporte coletivo. As pessoas moram cada vez mais longe do emprego. Na cidade mais rica do país, as cenas de plataformas repletas e passageiros revoltados com as condições degradantes dos trens tornaram-se rotina – quase todas as sete linhas da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) apresentam média de usuários superior a seis por metro quadrado, o máximo recomendado pela Organização Mundial de Saúde. A novidade é que o metrô, que já teve fama de eficiente, confortável e rápido, cada vez mais se assemelha ao “primo pobre”.
O número de passageiros por metro quadrado nas Linhas 1 (Azul) e 3 (Vermelha), responsáveis por 80% das viagens, já supera o das linhas mais lotadas da CPTM (com até 8,4 por metro quadrado) nos horários de pico: na Linha Vermelha a lotação chega a 9,8. Na hora do rush, o tempo das viagens é triplicado por paradas e velocidade reduzida. “A demanda pelo metrô cresceu com o aquecimento da economia e por sua capacidade de integração com os outros meios de transporte, impulsionada pelo bilhete único”, diz o economista Eduardo Fagnani, professor da Unicamp, com tese sobre transporte público de São Paulo. “Mas era um aumento previsto: há 20 anos a demanda já atingia picos acima de 2 milhões de passageiros por dia (hoje são mais de 3,7 milhões).”
A superlotação traz mais do que desconforto no “metrô mais caro e mais lotado do mundo”, segundo Fagnani. Cerca de 40 falhas são percebidas por dia pelos funcionários do Centro de Controle Operacional do Metrô, principalmente na Linha Vermelha, devido sobretudo, de acordo com os próprios metroviários, à superlotação dos trens, que interfere no fechamento das portas nas estações e dificulta a manutenção. No ano passado, pelo menos dez dessas falhas ganharam destaque no noticiário, envolvendo problemas em portas, freios, fornecimento de energia e ventilação. Seis delas tiveram duração de mais de 30 minutos e em alguns casos o trem teve de ser esvaziado.
No episódio mais grave, em 21 de setembro, três horas de paralisação na Linha Vermelha prejudicaram 150 mil pessoas e provocaram a depredação de 17 trens. Tudo começou com a parada de um trem fora da plataforma no horário de pico da manhã. Presos por até 50 minutos nos vagões sem ventilação – nos trens mais novos as janelas não abrem –, passageiros acionaram a abertura de emergência das portas e saíram caminhando pelos trilhos, forçando o desligamento do sistema elétrico.
Segundo o metrô, a paralisação do primeiro trem deu-se porque o sistema de sinalização indicava portas abertas em um dos vagões, o que teria sido provocado por uma blusa. Mas o laudo do Instituto de Criminalística, divulgado semanas depois, não ratificou esse argumento. Metroviários e especialistas explicaram: houve uma pressão sobre as portas por excesso de passageiros. “O mecanismo é sensível justamente para dar segurança ao sistema e, naquele ponto, o trem faz uma curva para a direita em um trecho inclinado, o que empurrou os passageiros contra as portas”, diz o engenheiro Jaime Waisman, professor de transportes públicos da USP que atuou como projetista do metrô nos anos 1980.
“Qualquer sistema que opera no limite está sujeito a falhas, e isso, com certeza, vai se repetir”, frisa o engenheiro Sérgio Ejzenberg, também da USP. “Somos a metrópole com o metrô mais acanhado do mundo, com o menor número de linhas e o mais lotado. No mundo inteiro, o metrô é a solução para as metrópoles por ser o único sistema com capacidade de transportar 100 mil passageiros hora/sentido e permitir várias linhas em paralelo. As linhas se interligam e o embarque é pulverizado, sem necessidade de grandes estações. Aqui, em vez de uma rede de metrô, temos apenas três linhas superlotadas”, avalia.
Como comparação, Ejzenberg observa que entre 1967 e 2000 a Cidade do México criou uma rede de 200 quilômetros de metrô, enquanto o de São Paulo, que começou a ser construído em 1968, tem 69 quilômetros. “O nosso cresce em um ritmo de dois quilômetros por ano. Barcelona construiu 80 em cinco anos para sediar os Jogos Olímpicos de 1992”, diz.
Inaugurado em 1974, o metrô de São Paulo entrou no Guiness, em 1994, por ter a maior demanda por quilômetro quadrado. Mario Covas assumiu o governo do estado, em 1995, prometendo acelerar as obras e criar a Linha 4 (Amarela), àquela altura já tida como imprescindível. A linha vai do sudoeste ao centro da cidade, conecta-se à Vermelha (leste-oeste), na estação República – até hoje gigantesca e ociosa –, à Azul (norte-sul), na Luz, e ainda à Verde (região da Avenida Paulista), dividindo o movimento em direção ao centro. Covas morreu em março de 2001. Quando foi substituído pelo vice, Geraldo Alckmin, dois meses antes, o metrô tinha crescido apenas 3,5 quilômetros na Linha Azul e 4,1 na Verde.
Nada na Amarela, cuja licitação foi aberta no final daquele ano, com previsão de conclusão em 2004, o que não ocorreu até hoje. Em outubro de 2003 o governo assinou contratos de R$ 1,8 bilhão com empreiteiras para começar a obra. Os recursos viriam de empréstimos do Banco Mundial, Bank of Japan e BNDES. A parceria público privada (PPP), que deveria financiar metade da obra, só foi assinada no final de 2006 com o consórcio Via Quatro, encabeçado pela CCR, concessionária que já explorava comercialmente as principais rodovias estaduais.
O contrato dá à empresa privada a concessão da linha por 30 anos – empreendimento seguro, uma vez que o metrô de São Paulo é o único do mundo a dar lucro operacional, de acordo com José Jorge Fagali, presidente da companhia até o final de 2010. Quem mais coloca dinheiro no negócio, porém, é o contribuinte paulista. Até o momento, a Companhia do Metrô investiu R$ 2,4 bilhões dos R$ 3,8 bilhões previstos para por a primeira fase em operação até o final deste ano, com seis estações entre Butantã e Luz – a obra completa prevê 11 estações até 2014.
Mas o único trecho efetivamente entregue por Alckmin, depois de seis anos de gestão, foi o da Linha Lilás, que liga o Capão Redondo, na periferia da zona sul, ao largo Treze de Maio, em Santo Amaro, a 18 quilômetros do centro. Inaugurada em outubro de 2002, essa é a única linha razoavelmente vazia, já que está fora da rede, integrando-se apenas com linhas de ônibus e uma linha de trem da CPTM.
Outra construção, um trecho de 11,5 quilômetros entre Santo Amaro e a Estação Klabin – quando a Linha Lilás se ligaria à rede do metrô pela Linha Verde –, teve a licitação, iniciada no governo Serra em 2008, suspensa por fraudes. O orçamento de R$ 6 bilhões indica um custo por quilômetro (R$ 500 milhões) bem maior que o estimado por especialistas como Ejzenberg e Fagnanin, com base em preços internacionais (R$ 290 milhões).
Os atrasos sucessivos para entregar as linhas do Metrô trazem prejuízos à imagem do governo, mas favorecem a farra dos “aditivos”, que inflam o valor e os prazos previstos nos contratos iniciais. Foi o que aconteceu no primeiro trecho da Linha Lilás: o contrato firmado em 2000 pela CPTM – então responsável pela obra, depois transferida ao Metrô – com a francesa Alstom, a alemã Siemens e a espanhola CAF, no valor de R$ 527 milhões, foi alterado diversas vezes, resultando em um preço final de R$ 951 milhões e um prazo de entrega ampliado de 30 para 56 meses.
Esse é o maior dos mais de 20 contratos da Alstom com o governo paulista investigados pelo Ministério Público. Contratos suspeitos celebrados com o Metrô somam R$ 1,37 bilhão. O primeiro inquérito do Ministério Público sobre a Alstom foi aberto em maio de 2008, depois de o Wall Street Journal revelar que a multinacional francesa era investigada na Suíça e na França por suposto pagamento de propinas a agentes públicos do Brasil, da Venezuela e de Cingapura. A Justiça suíça tinha documentos que comprovavam pagamento de US$ 6,8 milhões de propina em um dos contratos suspeitos, justamente o da Alstom para fornecer equipamentos ao Metrô e à Eletropaulo.
As investigações levaram a prisões de intermediários estrangeiros e ao bloqueio de contas de dois brasileiros no banco Safdié, de Genebra: Robson Marinho, conselheiro do TCE desde 1997, ex-tesoureiro da campanha do PSDB e chefe da Casa Civil de Covas; e Jorge Fagali Neto, irmão de José Jorge Fagali (presidente do Metrô entre 2007 e 2010) e sucessor do hoje senador tucano Aloysio Nunes Ferreira na Secretaria Estadual de Transportes Metropolitanos em 1994.
A conta atribuída a Fagali Neto em Genebra recebeu US$ 10,5 milhões; a que seria de Marinho, R$ 2 milhões. O Tribunal de Contas do Estado também considerou irregulares contratos de R$ 556 milhões entre o Metrô e a Alstom. Em um dos negócios, de 2007, o então governador José Serra ressuscitou uma licitação de 1992, que pela lei das licitações teria caducado em 1997, para comprar 16 novos trens da multinacional francesa. Como os preços estavam defasados depois de 15 anos da celebração do acordo, o governo realizou uma pesquisa na internet para atualizar o valor de uma compra de meio bilhão de reais. Pagou mais de R$ 31 milhões para cada um dos trens, quantia considerada abusiva pelo TCE.
Outro contrato para modernizar o Centro de Controle Operacional (CCO), assinado em 1994 – ano em que Covas concorria ao governo do estado e Fagali Neto, suspeito do caso Alstom, era presidente do Metrô –, recebeu 12 aditivos ao longo do tempo, o que fez o valor inicial saltar de R$ 17 milhões para R$ 56 milhões. Um parecer de 14 de setembro de 2004 do conselheiro Edgard Rodrigues anota: “Ora, não é de se supor que o Metrô esteja funcionando a todo esse tempo sem o CCO. Ele está lá. É de se estranhar que para implantar um CCO se levem dez anos”.
De acordo com operadores do CCO, a reestruturação ocorreu em 1999 e até hoje os equipamentos fornecidos pela Alstom para o “cérebro tecnológico” do superlotado metrô não têm a qualidade esperada. Citam um exemplo singelo: o software instalado nos computadores provoca quedas constantes do sistema, que deveria estar permanentemente em funcionamento.
Em 12 de janeiro de 2007, pouco depois de Serra assumir o governo do estado, a escavação de um túnel na estação Pinheiros, da Linha Amarela, provocou um desabamento. A cratera aberta sugou uma van – com motorista e passageiros. Sete pessoas morreram e mais de 200 foram desalojadas.
Tocada pelo consórcio Via Amarela – Camargo Corrêa, Odebrecht, Queiroz Galvão, Andrade Gutierrez e Alstom –, a obra deveria ter sido fiscalizada pelo Metrô. Mas isso não ocorreu, segundo os promotores que moveram na Justiça uma ação criminal e outra civil. Se condenados, os 14 réus da ação civil – que inclui as construtoras e o presidente do Metrô na época, o engenheiro Luiz Frayse David – terão de indenizar em R$ 240 milhões as famílias das vítimas e o estado. E serão proibidos de assinar contratos com o poder público por cinco anos.
A argumentação feita pelo promotor Saad Mazloum – que está no blog da promotoria – fundamenta-se nos documentos da ação criminal, que pede a condenação dos réus por imprudência e negligência. Mazloum aponta como responsáveis pelo acidente a “desenfreada caça ao lucro, a ganância e a cupidez” das empreiteiras e o “total e deliberado desrespeito à lei e aos mais elementares princípios administrativos” por parte do Metrô.
Apoiado em laudos do Instituto de Criminalística e do Instituto de Pesquisas Tecnológicas, o promotor acusa as empreiteiras de não fazer estudos e sondagens geotécnicos complementares e de ignorar sinais de instabilidade no túnel e de rebaixamento do solo constatados em medições e relatos técnicos, prosseguindo com as obras em ritmo acelerado. Tudo com a cumplicidade do Metrô. O objetivo, na opinião do promotor, era economizar custos, uma vez que, por exigência dos financiadores da obra, o contrato foi assinado em modelo turnkey – preço fechado – para impedir os malfadados aditivos.
Em meio ao escândalo provocado pelo acidente, a Secretaria de Transportes Metropolitanos demitiu o então presidente do Metrô e o substituiu por um engenheiro com muitos anos de casa. José Jorge Fagali ostentava o crachá funcional número 2 e era gerente de custos, em 1994, quando seu irmão, Fagali Neto, assumiu a secretaria. José Jorge concedeu entrevista à Revista do Brasil agora em dezembro, dias antes de deixar a presidência, sem comentar o bloqueio da conta atribuída ao irmão na Suíça – sobre isso preferiu divulgar nota negando envolvimento no caso.
A reportagem questionou os problemas que afetam diretamente os usuários: a superlotação e as falhas técnicas, fatores que, segundo ele, não estão relacionados. O executivo reconheceu a demora na entrega da Linha 4 (Amarela), que teve apenas duas estações postas para funcionar parcialmente no ano passado, a poucos meses da eleição. E garantiu que as seis estações da primeira fase da linha estão prontas, atribuindo o atraso da entrada em operação aos testes do novo sistema de sinalização – CBTC –, implantado pela Siemens, que dispensa a presença de condutor no trem.
Depois do escândalo provocado pela investigação suíça, o Metrô assinou pelo menos mais um contrato com a Alstom, de R$ 706 milhões, justamente para fornecer o mesmo sistema de sinalização de trens para as linhas já existentes. “Os testes demoram porque antigamente havia um sistema de sinalização que era mais simples, mas o trem parava a 150 metros um do outro; nesse sistema o trem pode parar a 15 metros do outro. Com isso, o intervalo entre eles diminui e é possível colocar mais composições na linha, carregando mais passageiros”, afirmou, citando dois exemplos de implantação do sistema, uma linha em Barcelona e duas em Paris (com rede de 212 quilômetros de metrô).
“Quem não precisa não troca de sistema. Por que estou substituindo? Para aumentar a oferta de trem. Sem aumentar a oferta nas linhas que estou operando não há como enfrentar a demanda”, disse José Jorge. Atualmente, o metrô de São Paulo tem o terceiro menor intervalo do mundo entre trens: 115 segundos (Moscou tem 90 segundos; Paris, 95 segundos). Com a mudança, o Metrô espera reduzir o intervalo para 75 segundos.
A ideia de resolver a superlotação colocando mais trens preocupa os funcionários da companhia, acostumados às falhas técnicas das linhas, quase sempre resolvidas pela operação manual dos condutores. Qualquer usuário do horário de pico está acostumado a ter a viagem prolongada por redução de velocidade e sucessivas paradas anunciadas pelos alto-falantes “para aguardar a movimentação do trem à frente”. Como seria se as linhas tivessem mais trens?
José Jorge admitiu que a redução do intervalo é uma solução arriscada para o pequeno e lotado metrô: “Você tem razão, mas é preciso entender o plano como um todo, que tem a parte de expansão também. Se não fechar a rede, não botar mais linhas, chegaremos num ponto em que não tem mais o que fazer”. “Vira uma panela de pressão?”, questionou a reportagem. “Isso, com certeza”, confirmou. Naquele momento, 22 de dezembro de 2010, o Metrô previa uma expansão de 66,7 quilômetros de linha até 2014.
Duas semanas depois, Jurandir Fernandes assumiu a pasta dos Transportes Metropolitanos, a qual já havia ocupado na gestão anterior de Alckmin, período em que se concentra o maior número de contratos investigados no caso Alstom. No dia 10 de janeiro, o secretário anunciou o cancelamento dos planos de expansão, exceto da Linha Amarela – ainda ela –, que seria entregue até a Copa de 2014. O investimento previsto para o metrô será direcionado para a instalação de trens-bala, tecnologia em que a Alstom é uma das maiores fornecedoras mundiais, ligando a capital paulista aos municípios de São José dos Campos, Campinas, Sorocaba e Santos. É melhor que os visitantes fiquem longe da “panela de pressão”.